LIDAR COM A MEMÓRIA DA DOR:
A PAIXÃO DE SANTO CRISTO E A PENITÊNCIA DOLOROSA DAS ROMARIAS
Contrariando completamente a alegria da partilha e o otimismo da redenção inspirados pelo culto do Espírito Santo Paráclito, as celebrações em honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres e as Romarias Quaresmais realizadas na Ilha de São Miguel afastam-se da aura consoladora do divino Espírito e aproximam-se das experiências coletivas e subjetivas da perda e da morte.
Neste sentido, a fórmula “memória como tesouro de sofrimentos”, – criada pelo historiador da arte Aby Warburg[1] para analisar questões relacionadas com a transmissão da memória cultural, – coloca a experiência religiosa açoriana no centro de uma prática de rememoração metódica. Rememorar funciona como um ato de reverência religiosa esteticamente expressa por meio das dimensões gestuais da lamentação e da expiação. Gestualidade corpórea manifestamente presente na procissão do Santo Cristo e nas Romarias Quaresmais. Ambas incorporam e representam o sofrimento como um tesouro exemplar que deve ser elaborado com acurácia implacável para evitar fugas aliviadoras.
Segundo os testemunhos mais antigos, a procissão e a romaria foram instituídas com o propósito de aplacar o terror da destruição e das mortes incontáveis causadas pelos sismos e vulcões[2]. Tais cataclismas eram habitualmente interpretados como sinal do descontentamento divino.
Esse princípio de reverência e temor diante da onipotência divina e a elaboração da repetição imperiosa dos traumas incrustados na memória serve como pano de fundo que complementa a prática festiva e redentora das festas do Espírito Santo. É o que argumenta a professora doutora Susana Goulart Costa que se ocupou do tema em seu artigo “Religiosidade, Crenças e Festas Populares”:
“Numa leitura menos atenta, poderemos pensar que as expressões religiosas açorianas têm características paradoxais. As procissões e as romarias apresentam uma forte dimensão de martírio, de punição e de inquietação individual, enquanto que os festejos em honra do Espírito Santo projectam a alegria, a fraternidade social e o optimismo para com o novo ciclo agrícola em pleno Pentecostes. Mas, na realidade, estes registos cultuais compensam-se mutuamente, pois compõem as duas faces de uma vivência religiosa que garante a estabilidade perante as adversidades pontuais.
(…) É neste diálogo entre a alegria e a inquietação espiritual que devemos enquadrar a especificidade da religiosidade açoriana” (2012, p. 238)[3].
Essa polaridade tão bem demonstrada pela professora Susana Goulart torna-se, a meu ver, reflexiva porque explicita as “tensões espirituais de uma cultura”, parafraseando Warburg. É recorrendo à rememoração dos grandes traumas, enquanto operação resgatadora do passado, que podem ser entrelaçados o desejo de redenção simbolizado nas diversas manifestações da fé vivenciadas pelos açorianos.
[1] Conferir: SAMAIN, Etienne. “As ‘Mnemosyne(s)’ de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte”. Publicado em: Revista Poiésis (UFF), vol.17, p.29-51, 2012. [PDF]
[2] A este respeito temos como fontes documentais as crônicas de Gaspar Frutuoso e a autobiografia da Madre Teresa da Anunciada, precursora do culto do Senhor Santo Cristo e guardiã da sua imagem.
[3]COSTA, Susana Goulart. “Religiosidade, Crenças e Festas Populares”. IN: Roteiro Cultural dos Açores. Org: Machado Pires. Ponta Delgada: Centro nacional de Cultura, 2012.