Narrativas de vivências de mulheres que conquistaram espaço e reconhecimento em suas ilhas pelo trabalho e pelo talento que fazem delas desbravadoras de desafios.
Protagonistas
Drª Helena Amaral é professora e artista plástica da Ilha do Pico.
Srª Carminda Nunes é tecelã da Ilha de São Jorge.
Srª Conceição Neves é diretora da “Escola de Artesanato de Santo Amaro do Pico”.
Srª Inês Inês foi a precursora do reconhecimento do artesanato típico da Ilha do Corvo.
Drª Serafina Simões é a pioneira na gestão empresarial na Ilha Terceira. Drª Maria Teodora Borba fundou e dirigiu o Museu da Ilha Graciosa.
Drª Maria Machado nasceu na Ilha de São Jorge em 1890 e lutou contra a ditadura salazarista. Sua história é narrada pela Drª Alexandra Gomes, historiadora do Museu Francisco de Lacerda.
A Visibilidade das Mulheres Açorianas
Em 1928, Virgínia Woolf é convidada a palestrar sobre o tema “As Mulheres e a Ficção”. O convite é feito por duas faculdades da Universidade de Cambridge que aceitavam mulheres em seus cursos. Para desenvolver o tema da palestra, que deu origem ao denso ensaio “Um Teto Todo Seu”, Virgínia Woolf consulta o acervo da biblioteca do Museu Britânico. Ela mostra que, no final do século XVIII, escritores do sexo masculino, oriundos das mais diversas áreas do conhecimento, discutiam se as mulheres eram seres humanos como os homens ou se estavam mais próximas dos animais irracionais. Talvez seja por isso, pondera a nossa autora, que as mulheres tiveram de esperar até o final do século XIX para ver reconhecido seu direito à educação e muito mais tempo para ingressar nas universidades (2014, p. 43-47).
No início do século XX, com a ajuda de Virgínia Woolf, descobrimos que as mulheres têm uma história e, algum tempo depois, percebemos que podem conscientemente tentar tomá-la nas mãos, com seus movimentos e reivindicações. Também ficou claro, finalmente, que a história das mulheres podia ser escrita. Hoje os “Estudos Feministas” (“Women’s Studies”) já constituem uma área académica consolidada.
O momento, agora, é de fazer com que a história das mulheres seja discutida de forma mais concreta. Afinal, como bem observa Virgínia Woolf, o que uma mulher precisa para escrever ficção é de quinhentas libras por ano e de um teto todo seu (2014, p. 56-58).
A própria vida é maior do que a ficção e mais densa do que a mais complexa das teorias. Por esta razão, o que conta mesmo é conquistar um espaço próprio: “É notável a mudança de humor que uma renda fixa pode causar”, reitera nossa autora. Neste sentido, podemos dizer que a sua abordagem interessa aos nossos propósitos porque é essencialmente pragmática, não é teórica ou literária.
Quase um século de história separa-nos da publicação de Um Teto todo Seu e cá estamos diante das mesmas questões tão cruciais e tão objetivas, a saber: quais as condições necessárias para a criação artística e intelectual?
É nesta confluência de indagações e reflexões que eu gostaria de inserir as biografias das mulheres açorianas que inspiraram os registos que editei em formato audiovisual.
Começo pelo depoimento da artista plástica Dra. Helena Amaral. Seu depoimento é significativo porque marca a passagem do silêncio à plasticidade expressiva dos sorrisos esculpidos em pedras vulcânicas. Marca também a mudança dos modos de ver que, justamente, faz a história ou, pelo menos, faz emergir novos objetos no relato que constitui a história das mulheres nos Açores.
De início, em busca de ancestrais e de legitimidade, inspirada pela arte africana e por seu desejo de encontrar vestígios e torná-los visíveis através do seu processo criativo, começou um trabalho de memória que retira da impermeabilidade da pedra os sorrisos mais singelos e inusitados. Em toda a Ilha do Pico, esses sorrisos manifestam ambições mais teóricas favoráveis ao multiculturalismo e ao convívio fraterno. Deste modo, as pedras que sorriem pretendem questionar com a sua afetiva presença os juízos estéticos constituídos, tidos como universais e que expressam pontos de vistas predominantemente dogmáticos.
Um mundo a conquistar pelo exercício da arte. É o que nos mostra a Srª Carminda Nunes ao renovar a abordagem da tecelagem açoriana com a vivacidade da sua arte.
O seu depoimento é uma autobiografia extraordinária muito pouco íntima, mas muito pessoal e que pretende contar a história de sua família e da tecelagem na ilha de São Jorge ao longo de três gerações. A sua individualidade é o produto do tempo e das transmissões operadas pela família, verdadeiro “lugar de memória”. Essa grande tecelã inova e ingressa no domínio público ao despertar o interesse de turistas vindos dos mais distantes países.
Sem dúvida é necessário não abandonar a ideia do poder e da influência deste trabalho tão relacionado ao género feminino. Pelo peso de seu próprio simbolismo e pela força da tradição, tecer, manusear o tear é um gesto muito feminino.
Por conseguinte, transpor, com a tradição, os obstáculos que durante tanto tempo impediram o acesso das mulheres açorianas ao mundo do trabalho reconhecido e remunerado, fronteira proibida do saber e da criação, é o que encontramos na história vivamente descrita pelo depoimento da Sra. Conceição Neves, artesã e diretora da “Escola de Artesanato de Santo Amaro do Pico.
Através do seu depoimento, coloquei a mim mesma as seguintes questões: quais foram as vias da realização profissional nesse mundo proibido?
O que interessa ilustrar com esse contexto? Primeiramente desejo apontar para uma realidade mais ampla que remonta a um cenário onde a legitimidade do papel da mulher como reprodutora do núcleo familiar e da manutenção da família é entendida, pelo poder patriarcal, como uma das expressões fundadas na ordem da natureza.
Toda a produção criativa realizada pela Sra. Conceição Neves teve como ponto de partida o núcleo familiar: a educação para os trabalhos domésticos que lhe foi transmitida pela mãe. O trabalho artístico realizado pela mãe e pelas mulheres das gerações anteriores foi ofuscado pelos deveres da vida em família e pela divisão imemorial dos papéis sociais. Desta forma, numa sociedade insular, rural e patriarcal, as referidas práticas determinam atitudes de dominação/submissão. Donde é possível afirmar que, tanto homens quanto mulheres colocam sua posição social masculina ou feminina sob a pressão originada pela divisão do trabalho na unidade produtiva familiar. Por esta razão, a primeira dificuldade que a Sra. Conceição Neves precisou enfrentar para dar visibilidade ao seu ofício de artesã decorre do modo como entendemos o mundo do trabalho. Mais do que um esforço rotineiro, o trabalho desenvolvido pela Sra. Conceição Neves é a concretização de obras que expressam a sua mundividência insular e que lhe conferem reconhecimento social.
Nesse sentido, o trabalho artesanal possui um significado ativo de esforço afirmado e desejado para a realização de objetivos produtivos e criativos.
O trabalho feminino dedicado ao artesanato tradicional açoriano aparece cada vez mais nítido quanto mais clara for a sua intenção e a dimensão de seu esforço como podemos observar através do depoimento da Sra. Inês Inês, artesã pioneira da Ilha do Corvo.
A Sra. Inês Inês concede-nos uma visão singular a respeito da história de um trabalho que desempenha há muitos anos e, ao mesmo tempo, mostra como essa história é de todas as mulheres e de todos nós, já que fala também da relação com os homens, com a família e das representações do masculino e do feminino no interior das classes sociais, do poder e da sociedade. O eixo central dessa história é o processo da crescente visibilidade do seu trabalho não só na sua pequena ilha mas fora dela também. Em suas conquistas nos espaços público e privado, a Sra. Inês Inês incita-nos a pensar sobre o significado de escrever a história das mulheres, quando elas mesmas, mergulhadas em silêncios impostos e sufocadas por imagens distorcidas, por muito tempo desprezaram a importância de sua história. Na sua doce companhia, atravessamos fronteiras da história, redefinindo cronologias em função da especificidade da experiência feminina nos Açores. Algo que ainda não terminou, luta em curso, narrativa histórica em construção.
Dessa história, a Dra. Serafina Simões é também testemunha e protagonista. Por isso, ao contar a sua experiência como pioneira na gestão empresarial na Ilha Terceira, mostra-nos como a sua narrativa é significativa da passagem do silêncio à palavra e da mudança de um paradigma pois, ao contrário dos ofícios das açorianas artesãs, sempre associados ao núcleo doméstico da atuação feminina, a gestão de uma empresa do setor comercial é considerada um ato viril. Tal dissimetria chamou a minha atenção. Ela introduz a ideia de que a desigualdade entre homens e mulheres é socialmente construída através da atribuição, a ambos, de papéis diferenciados e hierarquizados. É também a afirmação de que as mudanças na organização das relações sociais sempre influenciaram as relações de poder.
Essa constatação é de significativa relevância na medida em que rompe não só com o determinismo biológico, como também com a própria ordem cultural modeladora do “ser homem” ou “ser mulher” na sociedade açoriana ao reconhecer, nesta condição, um estatuto culturalmente construído. Se é assim, o que fazer dessas imagens que nos trazem principalmente o imaginário dos homens? Pode-se fazer o inventário das representações da feminilidade no contexto da cultura insular?
Podemos indagar através da história da Dra. Serafina Simões sobre a maneira pela qual as mulheres açorianas viam e viviam suas imagens, se as aceitavam ou as recusavam, se se aproveitavam delas ou as amaldiçoavam, se as subvertiam ou se eram submissas. Para a nossa entrevistada, a sua imagem de mulher de vanguarda estabelece um confronto com um ideal social ao qual devem se conformar a maior parte das mulheres açorianas. Para ela, que deixou a sua ilha ainda muito jovem para ingressar na universidade e obter o diploma de economista, a sua autoimagem é o reflexo de um mundo a conquistar pelo exercício de uma profissão circunscrita ao território masculino. Mas também é, sobretudo, uma celebração, uma fonte de realização pessoal.
Assim, as fronteiras sexuais das profissões deslocam-se para um setor terciário em expansão que desenha o território dos empregos de hoje em todas as ilhas Açorianas. O fato de as mulheres aí estarem presentes mostra o seu progresso na conquista dos territórios laborais. Falta muito, no entanto, para ficarem em condição de igualdade na hierarquia das responsabilidades e dos poderes, inclusive no emprego público[1].
Diretora de Museu: seria uma profissão apropriada para uma mulher?
Sim, à primeira vista. As mulheres sabem embelezar os espaços com a organização dos objetos. Sabem dotar de harmonia estética o que aparentemente é desinteressante e desacertado. Organizar arquivos, conservá-los, guardá-los, tudo isso supõe uma certa relação consigo mesma, com sua própria vida, com sua memória. Pela força das circunstâncias é um ato feminino.
Encontramos aqui o trabalho da Dra. Maria Teodora Borba, fundadora do Museu da Ilha Graciosa. Logo no início do seu depoimento, ela declara que nasceu etnógrafa. Testemunhar a complexidade da sua memória autobiográfica é testemunhar a construção de uma identidade narrativa na qual os desejos e projetos de vida adquirem valor historiográfico. Em sua narrativa, a sucessão de episódios biográficos perde o seu caráter aleatório para integrar-se numa lógica em ação. É um ato de memória que através das reminiscências que regem a história da criação de um museu transforma um passado feito de rupturas em um traçado que religa tudo o que estava separado. O sucesso dessa ação de depuração das memórias está assegurado e preservado no acervo do Museu da Graciosa.
As fontes para a história das mulheres açorianas estão em toda a parte, misturadas às dos homens, mas existem algumas bibliotecas ou acervos especializados.
O Museu Francisco de Lacerda é uma ilha de histórias que abrigou uma exposição sobre a vida da Dra. Maria Machado. Graças ao trabalho de investigação realizado pela Dra. Alexandra Gomes, e que resultou na referida exposição, ficamos a conhecer melhor a biografia da Dra. Maria Machado. É através do seu percurso de vida que um universo de significações coletivas e de experiências cotidianas se inscrevem na história política de Portugal.
Nascida na ilha de São Jorge, Maria Machado fez o curso de magistério e, após um casamento que termina em divórcio, segue para Lisboa. Na capital, dedica-se ao movimento feminista e passa a integrar o Partido Comunista. Seu primeiro contacto com os movimentos sociais antifascistas ocorreu no interior das Associações Operárias. Disposta a alfabetizar jovens e adultos destas associações, Maria Machado estava convencida de que os condicionalismos econômicos e sociais dominavam aquele período austero da história de Portugal, tanto no horizonte da sociedade quanto no da história. Nas associações operárias, ela teve a oportunidade de participar de debates sobre o comunismo, o marxismo e o feminismo. A classe operária parecia-lhe a chave do destino dos portugueses e do destino do mundo. Para Maria Machado, a classe mais numerosa e mais pobre é também o símbolo de todas as opressões, vítima de uma intolerável injustiça.
Escrever a história da classe operária era uma maneira de unir-se a ela. Engajada na publicação clandestina da “Revista do Avante”, Maria Machado redigiu artigos e trabalhou durante três anos na tipografia do Partido Comunista. Foi entre os anos de 1942 e 1945 que esteve à frente do projeto editorial da revista e seu trabalho terminou quando a ação da PIDE culminou com a sua prisão. Torturada pelos agentes da ditadura, Maria Machado recusou-se a delatar os companheiros e companheiras do Partido Comunista. Em suas declarações, ela sempre defendeu a liberdade de expressão e de imprensa.
O movimento revolucionário estava lançado. Daí em diante nada o deteria.
Maria Machado também participou dos primórdios da história do movimento feminista em Portugal, movimento que representou a organização das mulheres em direção à emancipação e à liberação. Sua participação é o efeito de uma tomada de consciência ainda mais vasta: a da dimensão sexuada da sociedade e da história.
Ser uma imagem e uma voz. Seria essa a própria essência de uma feminilidade dedicada à história das mulheres e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres açorianas no espaço público da cidade, do trabalho, da política e da criação. Seria essa a expressão de um desejo: o desejo de transcender a história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, Uma história que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade para, enfim, alargar suas perspetivas espaciais, religiosas, culturais.
Em filigrana, finalizo lançando perguntas: o que, de facto, mudou nas relações entre os sexos, na diferença dos sexos representada, narrada e vivida? Como e porquê? E com quais efeitos?
[1] Sobre as estatísticas mais recentes, conferir: Laura Sagnier. As mulheres em Portugal, hoje. Ed: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa: 2019.
Bibliografia Consultada
SAGNIER, Laura. As mulheres em Portugal, hoje. Ed: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa: 2019.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução: Bia Nunes de Sousa: Ed. Tordesilhas. São Paulo, 2014.